segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Crônica da Semana

Hoje, mais um texto do Fernando Sabino. Crônica boa que eu fiquei feliz em ter reencontrado. Eu a li na oitava série e achá-la foi uma luta.


Televisão a dois


Ao chegar, ele via uma luz azul que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente como desconfiava. Às vezes, ainda pressentia movimento na cozinha:

- Etelvina, é você?

A preta aparecia esfregando os olhos:

- Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho?

Um dia ele abriu o jogo:

- Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ficar à vontade.

- Precisa não, doutor. Não gosto de televisão. Não gosto de televisão.

- E eu muito menos.

Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito o que fazer...

Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho em vídeo-tape aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, “só pra fazer sono”, como costumava dizer:

- Tenho horror de televisão.

Um dia Etelvina acabou concordando:

- Já que o senhor não se incomoda...

Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio, ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito erecta:

- Quer um cafezinho, doutor?

Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava, mal percebia sua presença. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro da casa. Se precisava ir até a sala para apanhar um livro, AL ousava acender a luz:

- Com licença...

Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restava de comodidade na solidão em que vivia: a preta lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco, ela se punha cada vez mais à vontade já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jornal depois da novela das oito. E às vezes ele vinha para casa cada vez mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousava perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estava sendo mostrado em outra estação.

A solução do problema lhe surgiu um dia quando alguém muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

- Etelvina, pode levar essa televisão lá para o seu quarto que hoje vai chegar outra para mim.

- Não precisava, doutor – disse ela mostrando os dentes, toda feliz.

Ele passou a ver tranquilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e o que era melhor, de cuecas – quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes – a televisão ainda quente. Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d’água, esticou o olho lá para o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém ligada.

Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que resolvesse acabar com o abuso, afinal, ela já tinha a dela, que diabo. Entrou uma noite de supetão e flagrou a preta às gargalhadas com uma piada do Chico Anísio.

- Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

Ela não teve jeito senão confessar, com sorriso encabulado:

- Colorido é tão mais bonito...

Desde então, a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a seu lado os programas em cores. O que significa praticamente casar-se com ela, pois, segundo a mais moderna concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal, consiste em ver televisão a dois.


Fernando Sabino

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